No ano passado, Maria Clara Araújo, foi notícia em um site, falando sobre ser travesti e que prestaria o Enem.
Aos 18 anos, Maria deixou claro seu objetivo de vida: estudar e trabalhar. Na época, ela estudava em um cursinho pré-vestibular e iria prestar o Enem, para conseguir uma vaga em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Seria a segunda vez que ela tentaria e a primeira vez que poderia usar seu nome social para participar do Exame Nacional do Estudo Médio (Enem).
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No início do mês de fevereiro, Maria Clara estampou em seu belo rosto, um sorriso de pura felicidade, ao dizer que foi uma das mais de 6 mil aprovadas na primeira chamada do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) às vagas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Em sua página pessoal do Facebook, Maria Clara escreveu um depoimento sobre sua vitória e principalmente sobre a situação atual das transexuais e travestis no Brasil.
Segue abaixo o texto escrito por Maria Clara:
“MEU MANIFESTO PELA IGUALDADE: SOBRE SER TRAVESTI E TER SIDO APROVADA EM UMA UNIVERSIDADE FEDERAL
Hoje, eu tive minha sobrancelha raspada por minha mãe, emocionada por eu ter sido a primeira pessoa de minha família a ser aprovada na Universidade Federal de Pernambuco. O que pra ela é uma realização pessoal de mãe que, diga-se de passagem, sempre me incentivou a estudar. Para mim, uma travesti negra, é uma conquista com imenso valor simbólico.
Desde muito cedo, o âmbito educacional deixou o mais explícito possível suas dificuldades em compreender as particularidades de minha vida: aos 6 anos, desejando ser a Power Range Rosa , aos 13 usando lenços na cabeça, aos 18 implorando pelo meu nome social e, logo, o reconhecimento de minha identidade de gênero. Nenhuma foi atendida. Nenhuma foi levada a sério como algo que eu, enquanto um ser humano, preciso daquilo para me construir e ter minha subjetividade.
Se ontem a professora tirou a boneca de minha mão, hoje o Reitor diz não ter demanda para meu nome social.
Eu existo! Nós existimos!
As violências por conta de minha identidade sempre trouxeram retaliações em salas, corredores e banheiros durante toda minha permanência na escola. Lembro-me de, inúmeras vezes, minhas amigas entrando em rodas feitas por rapazes para me bater e tentarem me salvar. ‘Para com isso! Deixa ela!’
Não era só comigo, mas fui a única que aguentei. Vi, de pouco em pouco, outras possíveis travestis e transexuais desaparecendo daquele ambiente, porque ele nunca simbolizou um espaço de acolhimento, educação e aprendizagem. Mas sim de opressão, dor e rejeição.
Uma vez encontrei na rua com uma das que estudou comigo. Eu voltava do curso, ela ia se prostituir. ‘Mulher, o que tu ainda faz em lugares como esse?’, ela me perguntou. Indignada, aliás. Ela me questionava com a testa franzida porque eu insistia em permanecer em um lugar que, cada vez mais, desmarcava que eu não era bem-vinda. Quando fui?
Os banheiros femininos estão com as portas fechadas, o nome nas cadernetas não pode ser alterado e os olhares de escárnio estão por todas as partes. De corredor à sala, de banheiro à secretaria.
‘O que ela faz aqui?', se perguntam diariamente ao me ver andando na luz do dia. Afinal, eu, enquanto travesti, devo ser uma figura noturna. Assim, sedimentando a posição que a sociedade me atribuiu: de sub-humana. E quando falo isso, meus queridos, estou sendo o mais honesta que posso.
Olhe ao seu redor! Quantas travestis e mulheres trans você se depara no seu dia a dia? Quantas estão na sua sala de aula? Quantas te atendem no supermercado? Quantas são suas médicas?
Espere até as 23h. Procure a avenida mais próxima. As encontrará. Porque lá, embaixo do poste clareando a rua escura, é onde nós fomos condicionadas a estar por uma sociedade internalizadamente transfóbica.
Quando vi minha aprovação, foi uma alegria por eu ter tido uma conquista, mas para além disso, eu tive a consciência de forma imediata, que dentro de minhas perspectivas de vida, ver uma pessoa como eu em um espaço acadêmico é algo utópico. Até quando será? Até quando minhas irmãs irão ter que ser submetidas a essas condições de vida?
Sem moradia, sem estudo, sem trabalho. Se prostituindo por 20 reais?
Onde está a dignidade?
Não somos iguais. Eu, travesti, não sou igual a você. Eu, travesti, além de ter batalhado por minha entrada, a partir de agora irei batalhar por minha permanência.
Optei por Pedagogia com a esperança de poder ser um diferencial. De finalmente pautar a busca por uma educação que nos liberta e não mais nos acorrente.
A escolha é apenas uma: lutar ou lutar. E eu, Maria Clara Araújo, escolhi ser um símbolo de força.
A revolução será travesti!”
Fotos: Chico Ludermir
A Redação