Não pretendo neste texto discutir o que é "igualdade", este é sem sombra de dúvidas um conceito em disputa, ainda não esclarecido, e que supõe, muitas vezes, que os sujeitos tenham condições de "igualdade", para além de uma igualdade jurídica, os sujeitos teriam uma espécie de "dignidade" inata e equivalente. O discurso da igualdade é, claramente, um posicionamento, e como todo posicionamento ele é político e possui suas implicações. Posicionar-se, como diria, Donna Haraway, em seu brilhante texto "Saberes Localizados", é assumir um "olhar", assumir uma técnica com a qual visualizamos o outro, segundo ela: "Posicionar-se, é, portanto, a prática chave, base do conhecimento organizado em torno das imagens da visão, é como se organiza boa parte do discurso científico e filosófico ocidental. Posicionar-se implica em responsabilidade por nossas práticas capacitadoras. Em consequência, a política e a ética são as bases da luta pela contestação do que pode ser vigente como forma de conhecimento racional."
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Considerando tal reflexão inicial é preciso que nos perguntemos: O que o discurso da igualdade enxerga? Quais são suas técnicas de ver? Como este discurso de igualdade enxerga as diferenças? Quero chamar atenção para nossa história recente (e ainda atual), do mito da democracia racial, promovido, sobretudo, nos períodos da ditadura civil-militar de 1964-1885, que, com um discurso de "igualdade" negava a existência do racismo e negava a história da construção da identidade subalternizada do negro. O discurso "escondia" as diferenças. Acredito, pelo que tenho visto em eventos LGBT que tenho frequentado, que o discurso da igualdade é recorrente, frases como "somos todos iguais" ou ainda "não importam as diferenças, temos de amar e respeitar". Para muitos pode parecer um belo discurso, afinal, ele tem belas palavras, todos amamos palavras como "amor", "igualdade", "dignidade", entretanto, é possível lutar contra a homotransfobia a partir deste discurso? Não.
Pode ser que isso assuste. Me assustei também com isso. Antes, eu chorava de emoção ao ouvir tais discursos, entretanto, percebi que não é possível "igualdade" nestes termos. " Somos todos humanos", não é possível a conquista da dignidade neste termo, por quê? Ora, é simples, partimos de "lugares de poder" muito distintos. A população LGBT não possui condições de ser igual ou semelhante aos cis-heterossexuais. Não é possível falar sobre igualdade, enquanto pessoas transexuais, travestis e transgêneros são consideradas como abjeções. Não adianta dizer que todos somos humanos, pois haverá sempre um "mas". Essa luta, demasiadamente conciliadora, demasiadamente "amiga", "bonitinha", não é capaz de produzir o empoderamento dos corpos subalternos. Isso por que, os olhos da igualdade não vêem as diferenças. Não me interessa em que somos iguais, estas não são as razões das opressões, elas residem no ponto onde somos diferentes, e é na diferença que devemos produzir políticas públicas.
Não me socializei como um homem heterossexual, ele não viveu as mesmas opressões que vivi. Não me socializei como um homem cisgênero comum. O caminho para a igualdade ainda é longo. Ela deveria ser banida de nossos discursos. Como assim, Fernando? Banir o discurso da igualdade? Isso é loucura! Não, não é. O caminho é mostrar aos sujeitos normativos, aos heterossexuais cisgêneros os privilégios que eles possuem. É fazer com que saibam que a condição deles é de "poder" dentro de um regime que, queiramos ou não, se organiza sexo-politicamente. O caminho para a igualdade está na problematização dos discurso de poder, dos saberes de poder. Está no empoderamento dos sujeitos subalternos.
Na semana passada foi divulgado o relatório da "Comissão Nacional da Verdade", sobre os crimes cometidos durante a Ditadura Militar, lá, há um capítulo sobre as torturas e a violências às populações LGBT. Entretanto, o que sabemos de nós neste período? Construímos heróis da Ditadura, da luta pela democracia, mas onde nós estávamos neste período? Como aqueles coletivos de esquerda, que lutaram pela democracia, nos tratavam? Poderíamos ser como somos ou deveríamos aumentar nossa "passibilidade hétero" para compor tais coletivos? A resposta é simples. Nós não estávamos. Como diria Félix Guattari em "A Revolução Molecular", os grupelhos de esquerda reproduziam as estruturas opressoras existentes no capitalismo. Reproduziam as estruturas subjetivas de exclusão, marginalização. Mesmo que discursassem pela liberdade, a nossa, era de terceiro plano.
Não podemos permitir que o discurso de igualdade nos engane, não podemos permitir que políticas públicas superficiais, que, teoricamente serviriam para nos garantir saúde, educação e empoderamento, sejam apenas formas de cooptar associações e movimentos LGBT pelo Brasil afora, desempenhando um papel que não promove nenhuma mudança real na condição das comunidades LGBT, além, é claro, daqueles que estejam inseridos naquela lógica política. Infelizmente é assim que muitos "movimentos" tem funcionado. O olhar do Estado para nós, é um olhar perverso. Direitos não podem, de forma alguma, ser "dados", devem ser conquistados. Precisamos construir um movimento LGBT que seja um tanto mais "queer". Que fuja às lógicas de acomodação e peleguismo da política brasileira.
Foto: AP Photo/dpa, Michael Reichel /
Frame do clipe "The Best Thing About Me Is You" do cantor Ricky Martin
Por: Fernando Vieira
Fernando, tem 24 anos é androssexual, ativista LGBT, professor de Língua Portuguesa, e atualmente dedica-se aos Estudos de Gênero da Teoria Queer. Tem influências de Deleuze e Foucault, e lhe agrada Slavoj Zizek e Lacan. Busca simplificar o obscuro jargão pós-moderno, e deseja, com seus textos, propor reflexões que possam produzir caminhos.