Muitos anos atrás, eu era integrante do coral da Riotur e nosso regente Mario nos avisou da apresentação natalina que faríamos em Motas, lugarejo rural situado entre Teresópolis e Friburgo. Uma grande festa estava sendo preparada para as crianças do local com muita música, brincadeiras e finalizando com a chegada do Papai Noel.
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Partimos numa manhã chuvosa de domingo em ônibus de viagem junto com uma trupe circense e um grupo de pagode. A viagem transcorreu tranquila, silenciosa até o trecho da serra em que deixamos a rodovia e nos metemos por pedregosa e lamacenta estrada, a cortar pequenos roçados de casinhas humildes.
Paramos diante de um campo de futebol. Tudo um lameiro só.
A chuva fina não dava trégua.
Uma senhora se plantou na porta do ônibus e, para cada um que saltava, ela entregava uma caixinha de Toddynho, um pacote de biscoito goiabinha e uma laranja.
Mais a frente, outra senhora remexia com colher de pau uma água escura a borbulhar num caldeirão.
Resolvi bisbilhotar:
“O que temos ai?”
“O almoço de vocês”, respondeu ela muito séria. “É chuchu e cenoura daqui mesmo. E não tem carne não, viu?”
“Nem uma carnezinha?”
“Não”, enfatizou com ar de pouca amizade.
Aquela sopa não despertava qualquer entusiasmo.
Imediatamente, fomos encaminhados na direção de uma casa grande, avarandada, instalada lá no alto do morro, nosso local de concentração para aquecermos as vozes até a hora do evento. Um subidão com escorregões aqui e ali, lama, bofes saindo pela boca, até alcançarmos a bendita. Cheguei pedindo água para uma mocinha e me joguei numa cadeira de varanda.
Suspeitei que aquele talvez fosse um programa de índio. Mas me investi de animação.
Refeito da escalada, observei a sala com móveis rústicos, parede de pedras e lareira. Depois voltei meus olhos lá para baixo, e descobri o pequeno tablado pintado de branco instalado numa das extremidades do campo de futebol. Nosso palco.
O dono da casa, que na época, era presidente da Riotur, veio nos saudar. Disse para ficarmos a vontade, para pedirmos o que quiséssemos.
Iniciamos nosso aquecimento vocal e a revisada nas músicas. Nessa função, a hora foi passando, passando. Bateu fome e a lembrança da tal sopa que nos aguardava lá embaixo. Não pensei duas vezes. Assim que vi a empregada na sala, pedi pão. Ela foi e voltou com uma cesta cheia. Meus colegas aderiram à causa, foram na onda, caímos dentro. Enquanto mastigávamos, vimos crianças lá embaixo se perfilando e ocupando o gramado molhado. A chuva dera trégua.
A trupe de circo entrou em ação fazendo evoluções, enquanto se ouvia o som dos pagodeiros saindo de dentro de um grupo escolar.
Mario avisou que era hora de irmos.
Fizemos a descida na aventura, um escorrega daqui, outro de lá. Ninguém caiu.
Atravessamos o campo de futebol na ponta dos pés, saltando ponto a ponto para não nos sujarmos. Muita água, muita lama. Com dificuldade, os naipes se ajeitaram naquele palco alto, porém, pequeno. Mal podíamos nos mexer, com o risco de alguém cair dele. Nosso regente foi obrigado a ficar de fora, embaixo. Explicou:
“O negócio é o seguinte. Assim que o Papai Noel aparecer, a gente canta.”
Ficamos paradinhos esperando. A trupe circense saiu de cena, todos cobertos de lama. A criançada logo se aglomerou na nossa frente, cada qual portando Toddynho, biscoito goiabinha e uma laranja. Estavam inquietos, ansiosos. Nós, imóveis, esperando o sinal.
Até que alguém apontou lá para o morro.
“É o Papai Noel! Viva! Papai Noel está chegando!”
Avistamos a charrete da aguardada criatura apontando lá na ladeira. Só que vinha em descida desabalada. O condutor, apesar da roupa vermelha, gorro e barba branca, não se assemelhava muito com o gorducho bom velhinho. Era um mulato magrinho, bem mirrado e gesticulava nervosamente. Algo estava fora do normal.
“Meu Deus”, alguém comentou. “Esse Papai Noel não está vindo rápido demais?”
Nosso regente fez seu gesto de comando e disse:
“Vamos lá, coro?”
E começamos a cantar:
“Blém, blém, blém, blém... Toca o sino blém, blém-blém, anunciando que Cristo nasceu em Belém, Belém, que nasceu em Belém...”
Até que a charrete chegou e varou o campo de futebol em velocidade impressionante. Foi direto pra cima da garotada que se desbaratou. Uma correria. Pânico.
O que se dava com Papai Noel? Endoidecera?
E nós lá cantando:
“Blém, blém, blém...”
Papai Noel riscou por nós igual bala e foi circundando o campo, mal se equilibrando no estribo, mal dominando as rédeas. A barba branca se desgrudara, ficando pendurada apenas numa orelha. Acenava e gritava algo, mas não o tradicional “Hou! Hou! Hou!”.
Finalmente entendemos que seu grito era de desespero:
“Socorro! Socorro! Não consigo parar o cavalo!”
A charrete deu uma volta completa pelo gramado, espalhando lama para todo lado e, novamente, indo na direção da criançada a correr, a se espalhar, achando graça, todas imundas. As professorinhas desesperadas.
Mario, assustado, não sabia o que fazer. Não interrompia a regência, virando a cabeça para trás o tempo todo para ver o desfecho daquilo.
E nós, obedientes, no nosso “Blém, blém, blém... Toca o sino blém, blém-blém...”
Até que uma das rodas da charrete entrou num atoleiro interrompendo a carreira ensandecida. O cavalo foi logo dominado e acalmado.
Só quem não se acalmava era o Papai Noel. Revoltado, desgrudou a barba da orelha e saltou naquele lameiro. A calça vermelha ficou marrom. Uma imundície.
“Isso é o que dá fazer as coisas de graça”, reclamou. “Ganhei o que com isso?”
Foi só falar pra ganhar uma laranja na cabeça varejada por uma criança sapeca.
Deixou o campo rápido e praguejando contra o universo.
Nosso “Blém-blém-blém” é que demorou um pouquinho pra acabar.
Dali, fomos direto para a sopa.
Por: Beto Caratori
Beto Caratori, escritor, jornalista, compositor e cantor, que atuou no movimento musical que revitalizou a cultura no bairro carioca da Lapa.